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19 de setembro de 2006

Crónica da Rua 513.2


João Paulo Borges Coelho *


A que título o autor deu este topónimo à rua que trata **, confesso que não sei, mas admito que ela seja, metaforicamente, uma décima milionésima parte da unidade que, bem ou mal, a relaciona com o remanescente do país moçambicano. Porque nela ocorre de tudo, entre o passado e o presente, com fantasmas à mistura. Digo fantasmas ou seres imaginários, na medida em que Moçambique, enquanto país livre, não nasceu do nada. A anteceder tal estatuto, teve por esteio séculos de colonização portuguesa, com os quais ainda hoje dialoga, aceitando-os ou repudiando-os, consoante os critérios do momento e as autoridades que os estabelecem.

Aqui chegado, confesso que não conheço a obra do autor para além do que a badana deste livro regista, dando-o como romancista de mais quatro títulos de ficção. Todavia, se me é permitida a ousadia, dou-o, desde já, como um excelente criador de personagens e de aspectos de vida colectiva.

Algumas das figuras por si criadas neste romance, após leitura, facilmente se instalam na nossa memória, não como tipos, mas como veras figuras humanas envolvidas e revolvidas pelo circunstancial, sem nunca, contudo, deixarem de ser quem são, de permanecerem vinculadas às suas específicas idiossincrasias.

Aparentemente, a rua 513.2 é uma rua como as outras. Tal como são os seus moradores, gente que vive melhor ou pior: uns, porventura, saudosos do passado e do prestígio e mando que exerceram; outros, cívica e politicamente em fase emergente, crentes de um futuro e adeptos da revolução que o anuncia.

Todos, contudo, se apresentam não muito seguros dos dias que lhes cabem, motivo pelo qual vivem em estado de existência pícara, recheada de pequenas artimanhas, quanto mais não seja porque cada dia vivido não carreia em si transformação que se veja. De forma que, como sempre desde que o mundo é mundo, cada um tem de se desunhar como pode para sobreviver ou para usufruir de um estatuto.

Ora, neste desunhar e neste sobreviver, se dá o relato da aventura de cada um, no geral sob a forma picaresca, a descoberto ou em segredo, valendo o todo por um imenso painel sociológico da condição actual de se ser moçambicano – pelo menos assim o creio! O que, diga-se de passagem, não ocorre por acaso, tendo em conta que João Paulo Borges Coelho é professor de História Contemporânea de Moçambique, na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. E já agora, mais acrescento: nasceu no Porto em 1955, conquanto possua a nacionalidade moçambicana.

Que vale isto no contexto, ao certo, não sei. Sei sim que este romance, pelo domínio da língua e das situações que relata e mais pelo tempero da fina e humana ironia com que é dotado, se situa muito acima do que vulgarmente nos é dado a conhecer.



P.S.
Já depois de ter elaborado esta breve recensão, colhi a notícia de que o autor foi laureado com o Prémio Craveirinha de Literatura (2005), na condição de criador do romance “As Visitas do Dr. Valdez”, instituído pela Associação de Escritores Moçambicanos, o qual, julgo, se mantém inédito em Portugal.***

João Paulo Borges Coelho. Crónica da Rua 513.2, Editorial Caminho, Lisboa, 2006.

Ramiro Teixeira

in
18.09.2006


* João Paulo Borges Coelho nasceu no Porto, em 1955, mas adquiriu nacionalidade moçambicana. É historiador. Ensina História Contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, e, como professor convidado, no Mestrado em História de África da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem-se dedicado à investigação das guerras colonial e civil em Moçambique, tendo publicado vários textos académicos em Moçambique, Portugal, Reino Unido, Espanha e Canadá. As Duas Sombras do Rio é a sua primeira obra de ficção.

http://html.editorial-caminho.pt


** João Paulo Borges Coelho. Crónica da Rua 513.2, Editorial Caminho, Lisboa, 2006.


***
As Visitas do Dr Valdez já foi editado em Portugal, pela Editorial Caminho, em 2004.

14 de setembro de 2006

... o Pato Donald comeu a Margarida


João Melo


Esta é a segunda vez que comento um livro de João Melo, escritor e fundador da União dos Escritores Angolanos, ao que acrescenta a condição de deputado à Assembleia Nacional.

Na versão primeira ocupei-me de “Filhos da Pátria”, um outro livro de contos, salientando especialmente a atitude de gozação que o caracterizava, através de bem conseguidas histórias com registos afins à exteriorização verbal pela ironia, pelo pícaro e pela verrina, as quais nos davam a conhecer o universo angolano dos dias de hoje nas suas mais dispares vertentes.

Pela leitura deste novo título * só posso reafirmar o que disse do anterior. Na verdade, este livro não se distingue do antecedente, pois que reflecte a mesma visão desencantada sobre aspectos político-sociais do universo angolano, à mesma com a mais valia de os denunciar sob a forma irónica e pícara – a começar logo pelo conto que dá o título ao volume, que é, porventura, um modelo de tal género. Ou não seja o engatatão desta história um mal logrado conquistador duma Margarida que acaba em pato depenado...

Como todos sabemos, a literatura primitiva dos povos africanos é rica em tradição oral e em aspectos etnográficos. No caso de Angola, desde cedo foi dado adivinhar o sentido mítico das suas histórias e lendas em percurso acelerador para a compreensão das suas estruturas sociais, motivo pelo qual, pesem embora as contingências epocais, a obra de Castro Soromenho é deveras importante. É claro que o tempo e o género das narrações de Castro Soromenho não podiam deixar de estar, como estavam, infectadas pelo vírus colonialista. Mas nem por isso deixaram de se revelar como veros documentos de interpretação dos desajustamentos das relações sociais e humanas entre brancos e negros.

A meu ver, perto ou mais de cinquenta anos passados, João Melo recria o mesmo tipo de desajustamentos e de prenúncio de tempos instáveis, não entre brancos e negros, mas entre as diversas etnias negras, divididas, para mais ou para menos, em correspondentes facções políticas e com uma diferença que não é de somenos: a de tudo relatar sem recurso ao dramático, antes, e com que talento!, recorrendo à ironia para caracterizar a vivência quotidiana do angolano em seus diversos estamentos sócio-políticos.

Assim, por esta via, sem traumas nem saudosismos, dá-nos João Melo um curioso e bem humorado retrato da vivência do povo angolano, independentemente da categoria social de cada um, ainda que sempre determinado pelas mais ou menos valias que o enquadram nessa mesma sociedade. Isto permite-lhe aparentar-se com a ramalhal figura de Ortigão, obviamente no farpear que as suas intenções transportam, motivo pelo qual as suas histórias são mais crónicas de verrina do que verdadeiramente narrativas literárias.

Ramiro Teixeira

in
11.09.2006


*João Melo. O Dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida, Editorial Caminho, Lisboa, 2006.