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14 de setembro de 2006

... o Pato Donald comeu a Margarida


João Melo


Esta é a segunda vez que comento um livro de João Melo, escritor e fundador da União dos Escritores Angolanos, ao que acrescenta a condição de deputado à Assembleia Nacional.

Na versão primeira ocupei-me de “Filhos da Pátria”, um outro livro de contos, salientando especialmente a atitude de gozação que o caracterizava, através de bem conseguidas histórias com registos afins à exteriorização verbal pela ironia, pelo pícaro e pela verrina, as quais nos davam a conhecer o universo angolano dos dias de hoje nas suas mais dispares vertentes.

Pela leitura deste novo título * só posso reafirmar o que disse do anterior. Na verdade, este livro não se distingue do antecedente, pois que reflecte a mesma visão desencantada sobre aspectos político-sociais do universo angolano, à mesma com a mais valia de os denunciar sob a forma irónica e pícara – a começar logo pelo conto que dá o título ao volume, que é, porventura, um modelo de tal género. Ou não seja o engatatão desta história um mal logrado conquistador duma Margarida que acaba em pato depenado...

Como todos sabemos, a literatura primitiva dos povos africanos é rica em tradição oral e em aspectos etnográficos. No caso de Angola, desde cedo foi dado adivinhar o sentido mítico das suas histórias e lendas em percurso acelerador para a compreensão das suas estruturas sociais, motivo pelo qual, pesem embora as contingências epocais, a obra de Castro Soromenho é deveras importante. É claro que o tempo e o género das narrações de Castro Soromenho não podiam deixar de estar, como estavam, infectadas pelo vírus colonialista. Mas nem por isso deixaram de se revelar como veros documentos de interpretação dos desajustamentos das relações sociais e humanas entre brancos e negros.

A meu ver, perto ou mais de cinquenta anos passados, João Melo recria o mesmo tipo de desajustamentos e de prenúncio de tempos instáveis, não entre brancos e negros, mas entre as diversas etnias negras, divididas, para mais ou para menos, em correspondentes facções políticas e com uma diferença que não é de somenos: a de tudo relatar sem recurso ao dramático, antes, e com que talento!, recorrendo à ironia para caracterizar a vivência quotidiana do angolano em seus diversos estamentos sócio-políticos.

Assim, por esta via, sem traumas nem saudosismos, dá-nos João Melo um curioso e bem humorado retrato da vivência do povo angolano, independentemente da categoria social de cada um, ainda que sempre determinado pelas mais ou menos valias que o enquadram nessa mesma sociedade. Isto permite-lhe aparentar-se com a ramalhal figura de Ortigão, obviamente no farpear que as suas intenções transportam, motivo pelo qual as suas histórias são mais crónicas de verrina do que verdadeiramente narrativas literárias.

Ramiro Teixeira

in
11.09.2006


*João Melo. O Dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida, Editorial Caminho, Lisboa, 2006.

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