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9 de março de 2007

Mantém a tua mão

Mantém a tua mão
No rigor das dunas
Andar no arame
Não é próprio de desertos

Cruza sobre mim
As pontas do vento
E orienta-as a sul
Pelo sol

Mantém a tua mão
Perpendicular às dunas
E encontra o equilíbrio
No corredor do vento

A nossa conversa percorrerá oásis
Os lábios a sede

Quando saíres
Deixa encostadas
As portas do Kalahari.


Paula Tavares
“Manual Para Amantes Desesperados”

13 de fevereiro de 2007

A Génese do Amor

Talvez um intervalo cósmico
a povoar, sem querer, a vida:
talvez quasar que a inundou de luz,
retranformou em matéria tão densa
que a cindiu,
a reteve, suspensa,
pelo espaço –

Eram formas cadentes
como estas:

Imagens como abóbadas de céu,
de espanto igual ao espanto em que nasceram
as primeiras perguntas sobre os deuses,
o zero, o universo,
a solidez da terra, redonda e luminosa,
esperando Adamastores que a domestiquem,
ou fogos-fátuos incendiando olhares,
ou marinheiros cegos, ávidos de luz,
da linha que, em compasso,
divide céu e
mar

Quasar é pouco, porque a palavra rasa
o que a pele descobriu. E a pele
também não chega:
pequeno meteoro em implosão

Estátua em lume, talvez,
à espera, a paz (ainda que haja ausente
crença ou fé), e, profano, o desenho
desses estranhos bichos,
semi-monges, malditos,
deslumbrados,
e uma visão, talvez,
na penumbra serena de algum
claustro


Ana Luísa Amaral
“A Génese do Amor”
Prémio Literário Casino da Póvoa 2007

12 de fevereiro de 2007

Meditação de Catarina

Lentamente tens vindo
a demorar-me
os dias

Como oitava de linha
musical,
ou oitavo de círculo,
assim me vens
a ser

Mas o segmento amplia-se
em proporção de esfera,
dia a dia,
e essa constância envolve-me
em traço comovente

E a mim própria
me espanto

E espanta-me a vontade
de perguntar mais uma vez
por deuses,
de te acolher
agora

E não saber se o tempo
não me fará um dia
de pé sobre o abismo,
uma vez mais

Tal como, olhando o Tejo,
e neste fim de tarde,
te revejo,
e o grito das gaivotas
invade o paço todo:

longo e inteiro:
inesperado:
o lume


Ana Luísa Amaral
“A Génese do Amor”
Prémio Literário Casino da Póvoa 2007

Camões Fala a Petrarca

De ti tardei a tradição e
o tempo

Só não herdei a voz

Essa me é feita
de paragens outras,
de cabos que passei,
mas que são meus

De ti herdei talvez
artes de amar,
mas numa língua outra:

ofícios mais difíceis
de viver

E depois, eu: aqui
e tu: aí – séculos, modos
longos como mares

Aqui me acho gastando
dias tristes,
outras vezes mais belos,
sabendo que esta vida,
a vida em verso,
maior às vezes do que a outra vida,

como depois de nós,
muito depois,
alguém, que será muitos,
falará



Ana Luísa Amaral
“A Génese do Amor”
Prémio Literário Casino da Póvoa 2007

27 de janeiro de 2007

"Desmedida" de Ruy Duarte de Carvalho

Desmedida (Cotovia, 324 pp, 14 euros) é o novo livro – a lançar dentro de dias, e de que o JL antecipa dois excertos – do poeta, escritor e antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho, 65 anos, uma das vozes mais singulares da Literatura de expressão portuguesa. É a narrativa de uma viagem entre Angola e Brasil, a realidade e a ficção, em que o escritor se torna explorador seguindo a “respiração” do rio S. Francisco. Ruy Duarte de Carvalho, que reuniu a sua poesia no volume Lavra, é autor ainda de Os Papéis do Inglês, Vou Lá Visitar Pastores e As Paisagens Propícias, entre outros. Aqui, o escritor responde, por escrito, às perguntas que lhe fizemos sobre esta sua nova obra.

Jornal das Letras: O que procurou encontrar nesta viagem que partiu de Luanda e lá regressou, depois de percorrer o Brasil?
Ruy Duarte de Carvalho
: A viagem do livro sai de Luanda e volta a Luanda, sim, e talvez isso possa trazer alguma água-no-bico, tudo a desenrolar-se num hemisfério sul que nalguns casos já pode permitir-se não ter de recorrer obrigatoriamente ao norte, etc., etc… é conversa de agora e a uns agrada, a outros não… mas essa viagem, com programa ou com ficção de narrativa a haver, não esteve nunca destinada a ‘procurar encontrar’… ela só se impôs quando a dada altura vi que dava para querer ir curtir e ver… ir ver, em Minas Gerais, se os sorrisos, agora lá, rimavam ainda com os que eu tinha andado a vida inteira a decifrar em livros brasileiros…

E que encontrou nessa demanda seguindo o rio S. Francisco?
Encontrei sorrisos, sim, e investi numa experiência que eu andava muito a querer ter: aprender a reconhecer os tempos da respiração de um grande rio…

Desmedida deambula também em torno de personagens como Blaise Cendars ou Richard Burton. Porquê? E quais as razões da escolha?
Nem escolha foi… Vi-me na pele de Cendars, convidado de luxo, numa fazenda do interior paulista, e a conversa pegou em sir Richard Burton… fazia a ponte com África, de onde eu estava a sair, e apontava ao São Francisco, por onde ele andou a explorar delírios na década de 60 do século XIX… ora quem diz S. Francisco diz também pelo menos, pelo menos para mim, Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, e Independência do Brasil, e holandeses antes… entrariam então fatalmente em cena, a partir daí, as complementaridades, as simultaneidades, as contiguidades entre o Brasil e Angola, até hoje, em pleno boom de desmedidas ocidentalizastes alargadas às extremas fronteiras da expansão, etc., com índios encravados no fundo de inconcebíveis amazónias sem nunca terem visto homem diferente, etc., e tudo isto considerado a partir de um arranha-céus no centro desse pólo da rede de articulação do mundo que a megapolis de São Paulo é… etc., etc… (é disso também que a viagem consta)… nessa altura já não dava para não querer fazer o livro…

Cruzam-se em Desmedida também linhas narrativas ficcionais? Como é que o viajante faz essa tessitura? E é também o olhar do antropólogo que se reflecte na narrativa?
A linha ficcional principal, em casos destes, às tantas, julgo, é a da própria engenharia da narrativa… e depois tem derivas pessoais, a partir do que se vê, lê ou lembra ter lido, que vão articular-se a ficções e a memórias alheias… o olhar do antropólogo, esse, não vem fazer nada aqui… o olhar que neste caso comanda a narrativa é que, em sendo caso disso, pode servir ao antropólogo também…

Que relações estabelece Desmedida com livros como Vou lá visitar Pastores?
No Vou lá Visitar Pastores é o antropólogo quem narra… aqui neste livro – e dos Pastores para frente – quem narra é outro que já tinha agarrado, antes de ser antropólogo (ou já tinha sido agarrado por…), uma maneira de olhar tributária sabe-se lá o quê…


Maria Leonor Nunes

JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17-30.01.2007