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5 de junho de 2009

Isto é que fazem de nós



Isto!
E perguntam-nos:
- sois homens?
Respondemos:
- animais de capoeira.
Dizem-nos:
- bom dia.
Pensamos:
lá fora...

Isto é que fazem de nós
quando nos inquirem:
- estais vivos?
E em nós
as galinhas respondem:
- dormimos.



Arménio Vieira

Derivações



Heliofante: filho de um deus
chamado Sol. Gosta do arco-íris
e do girassol. Quando fode,
é por foder. Nunca come.
Para quê? Basta um raio
para lhe carregar a pilha.

Helifante: tem um hélice na cauda,
e caso quisesse poderia voar.
Mas não. Cada um é o que é:
o condor sente-se feliz lá em cima,
porém o sapo coaxa contente no charco.

Leofante: tem o seu quê de leão,
mas não quer ser rei. Às vezes
sente raiva e um nó na garganta.
Porém controla-se e vai embora.

Olifante: tem chifres enormes,
mas é mole de pila. Dão-lhe
com os pés as damas, mas ele
não se zanga, pois sabe
que o amor para durar
só pode ser o amor
de que falava Platão.

Polifante: não tem pátria, por opção.
Tanto se lhe dá que faça sol
ou caia neve, nada o aquece
ou arrefece. Até gosta de Pasárgada,
que, entre outras coisas,
é o melhor sítio do mundo
para se andar de burro.

Plurifante, Mitofante, Necrofante,
Ornifante, Putifante, Androfante,
Fenolofante e assim por diante.

Elefante não, porque já existe.


Arménio Vieira

Outros infernos


O Inferno, tal como é descrito
em certos livros, com gravuras
terríveis, a cores, já ninguém
lhe pega, é gracejos de palhaços
para entreter a malta. Mesmo o amor
que já foi inferno, quando Petrarca
e Dante viam Beatriz e Laura na cama
com outros gajos – se não viam,
então ouviam –, mesmo o amor perdido,
afinal tão perto do Paraíso
enquanto se teve a ilusão de que o beijo
é um exorcismo capaz de assustar
o anjo exterminador, mesmo esse,
é um inferno excelente para os jornais.
Chateia que se farta, faz chorar
às vezes e bota-se fora, já não dói.
Há os que acham tesouros a sonhar,
outros vêem-se belos e até príncipes.
São contos de fadas lidos a dormir.
No entanto, há infernos sérios,
pavorosos, como o vento, ciclónicos,
não cabem nos livros, ninguém os pinta.


Arménio Vieira

4 de junho de 2009

Epopeias


Arma virumque cano … Deixemo-nos
de tretas! Versos destes escreviam-se
antigamente, quando Eneias e Ulisses,
em barquinhos de papel, arrancavam
olhos aos ciclopes, rindo nas barbas
de Neptuno, um rei de óculos e bengala
a precisar de viagra. Ezra Pound,
cow-boy e poeta, quis ressuscitá-los.
Pensando em quem? Mussolini via-se
bem que não. Era um anão gorduchinho,
parecido aos que andam nos circos
a divertir a garotada. Entre um bicho
assim e um homem chamado Aquiles
a distância é de uma légua.
Canto l'arme pietose el capitano
Deixemo-nos de tretas! Nós, a mor
das vezes, somos tigres a fazer figura
de urso. As armas e os barões
Isso era antigamente, quando os Lusos
se riam a custa de Baco, rei sem
préstimo, bebedor de vinho.

Arménio Vieira

Construção na Vertical


Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.

Mas atenção: o uso da cola
estragaria o teu poema.

Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!

Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.

Quando estiver concluído,
não assines, o poema não é teu.

Arménio Vieira


Lisboa - 1971



A Ovídio Martins e Oswaldo Osório




Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar.

Eis-nos enfim transidos e quase perdidos
no meio de guardas e aviões da Portela

Em verdade éramos o gado mais pobre
d'África trazido àquele lugar
e como folhas varridas pela vassoura do vento
nossos paramentos de presunção e de casta.

E quando mais tarde surpreendemos o espanto
da mulher que vendia maçãs
e queria saber d'onde… ao que vínhamos
descobrimos o logro a circular no coração do Império.

Porém o desencanto, que desce ao peito
e trepa a montanha,
necessita da levedura que o tempo fornece.

E num camião, por entre caixotes e resquícios da véspera,
fomos seguindo nosso destino
naquela manhã friorenta e molhada por chuviscos d'inverno.


Arménio Vieira





Ser Tigre




O tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo,
infra-sémen.

Não tem forma,
é quase nada, parece morto.

Porém existe,
por isso espera.

Epopéia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,

Ele será
quando for tempo disso.


Arménio Vieira

Poema



Mar! Mar!
Mar! Mar!

Quem sentiu mar?

Não o mar azul
de caravelas ao largo
e marinheiros valentes

Não o mar de todos os ruídos
de ondas
que estalam na praia

Não o mar salgado
dos pássaros marinhos
de conchas
areias
e algas do mar

Mar!

Raiva-angústia
de revolta contida

Mar!

Siléncio-espuma
de lábios sangrados
e dentes partidos

Mar!
do não-repartido
e do sonho afrontado

Mar!

Quem sentiu mar?


Arménio Vieira

Quiproquó



Há uma torneira sempre a dar horas
há um relógio a pingar no lavabos
há um candelabro que morde na isca
há um descalabro de peixe no tecto

Há um boticário pronto para a guerra
há um soldado vendendo remédios
há um veneno (tão mau) que não mata
há um antídoto para o suicídio de um poeta

Senhor, Senhor, que digo eu (?)
que ando vestido pelo avesso
e furto chapéu e roubo sapatos
e sigo descalço e vou descoberto.


Arménio Vieira