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10 de agosto de 2008

Deoquinha Jegue Ruço


Quem viu Deoquinha no seu belo dia-a-dia para todo o sempre o guardará na lembrança. Terno de diagonal branco, chepéu de palhinha inglês, correntão de ouro trespassado por cima do colete cor de pérola, brilhante maior que um feijão-manteiga espetado na gravata, bigodinho delgado e lustroso, sapato marrom e branco de furinhos coberto por polainas alvas, suspensório africano de couro de crocodilo, anelão de topázio coruscando ao sol, bengala de ébano com cabo de marfim escastoado de platina, costeletas bastas descendo até o meio das bochechas, a cabeça erguida com altivez mas sem soberba, o riso pronto para os passantes, a voz sonora num bom-dia aqui, um como-passou acolá, largas passadas desapressadas, ei-lo caminhando Campo Formoso abaixo, em direção ao largo da Quitanda. Se magnas transações e ardilosas estratégias sedutoras ocupam o seu espírito, nada disso é denunciado pelo afável semblante sereno que exibe, enquanto alcança a igreja de São Lourenço e se detém na esquina com os polegares enfiados por baixo dos suspensórios, certamente avaliando como seria seu dia e tomando as anotações mentais que fazia sua memória tão admirada.

Dia de maior liberdade, como acontecia sempre que Benedita estava na Bahia. Não que ela o perseguisse ou espionasse de alguma forma, mas sua presença na ilha o obrigava a manter uma compostura que desde cedo se impusera, questão de respeito com a mulher. Certas conversas com mulheres livres, certas visitas às claras, certa convivência com alguns dos filhos bastardos mais velhos ou apegados, nada disso lhe traria más conseqüências concretas, mas a boa educação lhe ensinara a respeitar a esposa, não tomando atitudes públicas que dessem munição às muitas invejosas inimigas dela. Em mulher não pega chifre, sendo apenas uma falsificação moderna a invenção da corna, mas, de qualquer maneira, para que expor-se a aborrecimentos inúteis?

Ajeitou o paletó, tirou do bolso o cebolão, levantou-lhe a tampa monogramada e olhou as horas pensativo. Já dera mais de oito e um quarto, os meninos com certeza estavam passando, um atrás do outro, no açougue Orgulhoso Talho São Roque, o principal dos muitos que tinha pela ilha e redondezas e à cuja porta costumava ficar de pé, fumando um cigarro em sua piteira de prata e supervisionando a entrada de carne para o abastecimento das famílias que mantinha. Lourenço Bode Novo, empregado de confiança havia mais de vinte anos, já de muito sabia de cor a quem entregar carne, de que corte e em que quantidades, mas ele gostava de comandar pessoalmente esse importante aspecto de sua vida, lhe dava um prazer caloroso, que não sabia explicar direito. Nas raras vezes que permitia alguma preocupação maior lhe afetar a disposição, o remédio infalível era assumir aquele posto honroso e prazenteiro. Não deixava de desfrutar, era inegável, ser o maior centro de atenção do largo, seu cidadão mais influente, importante e elegante, mas o que lhe dava a melhor satisfação era mesmo ver a romaria incessante dos seus filhos, meninas e meninos, a mandado das mães, não só para pegar a carne como frequentemente para trazer bilhetes e recados com outros pedidos. Como era bom jamais falhar àquela prole incontável, poder botar a mão na consciência e saber que era fonte de fartura e felicidade para tanta gente, sentir-se um chafariz de bonomia e generosidade, quase um deus da abundância e da tranquilidade. Melhor, às vezes bastante melhor, do que o gozo da cama, embora este nunca possa ser substituído, porque o corpo sofre congoxosas consequências, que conduzem à caduquice prematura ou mesmo a caquexias irreversíveis, principalmente entre os homens, mas, em índice menor, também nas mulheres, haja visto o vasto acervo de viúvas levadas ao desequilíbrio dos nervos pela privação libidinal.

Sim, ia assumir seu posto preferido, depois pensaria. Atravessou o largo, saudando a todos sem distinção, nisso se diferençando de seu saudoso pai, que alava com quem pedia permissão antecipada ou então com figuras de projecção. Entrou rapidamente, como de hábito, na quitanda de Juvenal de Jaguaripé, somente para não deixar de cumprir o ritual que mantinha sabia-se lá desde quando.

- Juvenal, meu maioral! – disse ao velho amigo, levantando o chapéu com um floreio exagerado.

- Deoclécio, meu grande sécio! – retrucou Juvenal, repetindo a rima aprendida com o falecido mestre de Gramática Lupercínio Borba, que a usava amistosamente em relação a Deoquinha, para mexer com o apuro no trajar que era apanágio deste desde a adolescência.

- E continuas rei da ladroagem?

- Tanto quanto és rei da sacanagem.

- Que novidade me traz lá de Jaguaripe?

- Tem tanta puta quanto tem Maragogipe.

- Um dia destes trazes uma de lembrança?

- Só se for juntos que fizermos a chibança.

Riram como sempre, todos em torno também riram como sempre, grande Juvenal de Jaguaripe, senhor das frutas e legumes por toda a ilha, imenso Deoclécio Jegue Ruço, varão para cujo perfeito currículo só faltava tirar a sorte grande, apesar de falta não lhe fazer. Detiveram-se ainda em perguntas sobre as famílias e os afilhados que ambos tinham em cada lado, comentaram que o nordestezinho continuava firme e, portanto, firme também o tempo, mares mansos para os saveiros deles, se abraçaram, se apertaram as mãos e Deoquinha saiu para o açougue, onde acabavam de chegar, cada um vindo de um lado, dois meninos e uma menina, os dois nos seus oito anos, ela com mais ou menos cinco. Deoquinha sorriu, aligeirou os passos e chegou antes deles à porta do açougue. Os meninos eram a cara dele, nem que fosse para escapar do inferno conseguiria provar que não eram seus. Mas nunca sabia de quem eram, sempre se perguntava se eram o de Darlene ou o de Mariélia, os dois sacanetas tinham a mesma idade e pareciam gémeos. E podia também ser o de Shirley Maria, a quem nunca daria carne. Não por ruindade, mas por saber que Menezinho, o pai oficial, era aposentado da Leste Brasileiro, ganhando o mesmo que os maiores manganões e, portanto, só queria se aproveitar da bondade alheia, quando se sabe que o castigo do corno convencido é sustentar os filhos que lhe fizeram na mulher. E, além de tudo, não ficava bem para nenhum dos dois, não era uma prática decente. Se ele viesse confessar premência, aí não custava fazer a caridade. Mas desonestamente, querendo ser muito sabido às custas dos outros, aí não. Deoquinho deu um pequeno suspiro e agiu como sempre agia, nessas cada vez mais repetidas ocasiões.

- Minha mãe mandou buscar os dois quilos de carne dela – disse o primeiro menino.
- Sua mãe é quem?

- Dona Mariélia.

- Ah, então é meu filho mesmo. Dois quilos. Boré, dois quilos de carne para esse menino daí.

- Bença, pai!

- Tu és filho de quem?

- De Dona Darlene.

- Deus te abençoe. Quantos quilos são?

- É três.

- São três. Tu não estudas?

- Estudo, sim senhor.

- Não parece. Quem é a tua professora?

- Dona Zenaide.

- Vou conversar com ela. Vou conversar com ela e com a senhora sua mãe. Não pense o senhor que é um menino sem pai, que eu vou deixar o senhor virar um vagabundo sem instrução.

- Sim, senhor.

-Muito bem, o senhor está advertido. Boré, três quilos de carne para este analfabeto daqui.

Sobre a menina não tinha dúvidas, era sua mesmo, com Margarida de Lalau, lourinha como a mãe e como ele gostava, pois só gostava mesmo ou de brancas brancas ou de pretas pretas, o resto era quase sempre por honra da firma ou resultado de algum capricho, dele ou do Destino. Lourinha como cinco das suas oito filhas com Benedita – e não que ele fizesse distinção entre seus filhos, mas a verdade era que tinha mais orgulho da maioria lourinha, embora nem aos matos confessasse. Benedita era mais raceada do que ele e nos lourinhos se via a força de seu sangue aristocrático, dominando o dela e perdurando através de gerações. E, por pensar em Benedita, relembrou-se alegremente de que ela não estava na ilha, não havia como ela passar por ali e, por conseguinte, ele podia pegar sua filha no colo e dar-lhe uns vinte cheiros, desses de esfregar o nariz até quase ralar. Molecota sem-vergonha, hem, hem? Lindeza lindura do pai, mas está com os cachos cada vez mais lindos, mas não é uma pintura, mas não é um anjo do céu? Lourenço, você já viu moça mais bonita? Ninguém nunca viu, ninguém nunca, nunca que viu! Quantos quilos de carne são?

- São três tomem.

São três tomem? São três tomem, minha princesinha? São três tomem, Loulenço, veja como ela fala engraçadinho, dizem que eu também falei assim até grande. Pussou a papai, não foi, bonequinha? E pilulito, não quer pilulito? Não quer pilulito e quebaquesso e queimadinho de mel e maliola? Gosta mais de maliola, hem? Doce de leite? Dosta mais de doce de leite! Ela dosta mais de doce de leite, Lourenço. Ah, molequinha, que carinha sem-vergonhinha, olhe o narizinho arrebitado dela, olhe os olhinhos azuizinhos, papai dá dinheiro pra pilulito, queba-quesso, papai dá dinheiro pra tudo, papai ta cheio de dinheiro aqui pra maliola e pilulito. Lourenço, mande Boré ir com ela levar a carne, é muito peso para uma menininha carregar, vou reclamar com a mãe dela, mandasse o irmão mais velho – e Deoquinha repôs a filha no chão com delicadeza, para depois ficar seguindo seu retorno com os olhos úmidos, esquecendo tudo neste mundo, até mesmo o espinhosíssimo transe que logo teria de arrostar.

Sim, sim, estava envolvido num embate laboriosíssimo, capaz de desalentar o mais intimorato dos homens. E, por ironia, também por causa de um filho. César Augusto, um dos dois meninos que tinha com Coralina Amália, companheira solteira de Rosalvo Bico, mas comborça sua de confiança fazia quase quinze anos, como o próprio Rosalvo sabia e se aproveitava, umas duas vezes por ano, para lhe tomar dinheiro emprestado e nunca nem mencionar pagamento, Rosalvo jamais teve caráter. Agora o menino queria porque queria entrar para o seminário, que não aceitava bastardos, nem com os maiores pistolões. Deoquinha apertou a testa e franziu a boca. Se fosse somente uma questão de cartório, não encontraria nenhuma dificuldade, primo e amigo do juiz e usufrutuário das graças de Dilzonete, a escrivã que mandava em todas essas matérias de cartórios e certidões. Mas o seminário desprezava o registro civil e só levava em conta a certidão de batismo do menino e a de casamento dos pais. Oh Deus, será que daria certo o que tão cuidosamente engenhara, em raras noites de insónia? Padre Noronha podia tentar criar dificuldades, fazer ares de austeridade inquebrantável, mas era óbvio cabra safado e Deoquinha tinha armas, boas armas. Não, padre Noronha renderia somente uma certa perda de tempo, uma certa impaciência com sua vaidade e esperteza, mas dificilmente seria um empecilho definitivo, nunca seria. Mas Benedita, Deus do céu, não estava esperando demais, não estava ficando maluco? Não, não estava, já tinha passado por batalhas ainda mais esforçadas. Não, não, não valia a pena preocupar-se, a preocupação é um dos maiores atrasos da vida humana e Deus estava com ele, sempre tinha estado – e apalpou o escapulário abaixo do pescoço.

Claro, deixaria aquilo tudo para seu tempo devido. Com Coralina Amália já falara e Rosalvo nem dera ousadia de conversar porque ele faria tudo o que os dois lhe mandassem, aquilo não valia nada. Com o padre, estava marcado para as dez horas, na casa dele mesmo. Então, nada de preocupação, ainda mais que os céus protegem aquele que luta por um filho. A vida podia ter seus momentos de provação, mas ele era pai, acima de tudo pai, crescido e multiplicado e agora contemplando, de coração enternecido, sua filhinha caminhar tão faceirinha, na direcção do largo da Glória.. Pai, pai, como é bom ser pai, que bênção de Deus ser pai, nada neste mundo contém valor igual.

João Ubaldo Ribeiro
“Miséria e Grandeza do Amor de Benedita”.