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19 de fevereiro de 2008

Canção da Mulher

Teço os meus panos das folhas da sombra
cubro os meus seios do suor que escorro
enlaço os cabelos com as cordas do esforço
e enfeito o meu colo com a graça das crias.

CORO
E enfeito o meu colo com a graça das crias.

Fecundo o meu ventre
no ócio dos machos
devolvo às culturas
os frutos que colho
aleito o florir
da carne que gero
e ensino a sorrir
os olhos que beijo.

CORO
E ensino a sorrir os olhos que beijo.

Revolvo a raiz
da fome das gentes
alimento a terra
da urina que verto
concedo à semente
a força que a faz
transmudo horizontes
em ecos de voz.

CORO
Transmudo horizontes em ecos de voz.

Padeço ansiedades
na água que cai
transformou orações
em água vertida
do chão que trabalho
retiro a aventura
dos filhos que partem
de encontro à vitória.

CORO
Dos filhos que partem de encontro à vitória.

Circulo um lugar
dou-lhe a juventude
concedo-lhe a idade
que estações me dão
nada sei do tempo
senão que o pari
afiro pelas luas
os passos que dou.

CORO
Afiro pelas luas os passos que dou.

Dos outros eu sei
a obra que fica
o ferro, o metal
as casas herdadas
memórias, poderes
acção preservada
o nome investido
em novas acções
a glória
as fronteiras
a guerra
a conquista
caminhos
paredes
barragens
abrigos
sagradas cadências
canções de louvor.

CORO
Sagradas cadências canções de louvor.

Dos outros eu sei
a história gravada
nos gestos
nas vestes
na fé
na confiança
no vento que leva
para além da sede
o arroubo da audácia
e a voz dos profetas.

De mim sei as mãos
de mim sei o pó
de mim sei o sangue
e a carne que gera
as mãos de amanhã.
De mim sei a força que empola a semente
e o gesto que sagra a terra jacente
e arvora em comida o pó dos mais velhos
e a água que jorra
do nome que os vive.
De mim sei o esforço
do ventre e das mãos
de mim sei a carne
de mim sei o sangue
de mim sei a água
e o leite em mim juntos
para dar vida à carne
e à terra que sou.

CORO
De mim sei o esforço do ventre e das mãos
de mim sei a água e o leite em mim juntos
para dar vida à carne e à terra que sou.


Ruy Duarte de Carvalho
excerto de Noção Geográfica, poema para cinco vozes e coros
“A Decisão da Idade”


18 de fevereiro de 2008

Estas baías III

Da noite eu sei
– porque lhe estou a prumo no regaço
e a vejo prolongada pelos meus dedos
e dela me arborizo até ao florescer das madrugadas –

da noite eu sei – dizia –
que uma semente dada ao sol e às mãos
em carne há-de animar uma estação
de águas e corpos, sucessões e bênçãos.


Ruy Duarte de Carvalho
“A Decisão da Idade”

Venho de um sul

Vim ao leste
dimensionar a noite
em gestos largos
que inventei no sul
pastoreando mulolas e anharas
claras
como coxas recordadas em Maio.

Venho de um sul
medido claramente
em transparência de água fresca de amanhã.
De um tempo circular
liberto de estações.
De uma nação de corpos transumantes
confundidos
na cor da crosta acúlea
de um negro chão elaborado em brasa.


Ruy Duarte de Carvalho
“Chão de Oferta”

Chagas de Salitre

Olha-me este país a esboroar-se
em chagas de salitre
e os muros, negros, dos fortes
roídos pelo vegetar
da urina e do suor
da carne virgem mandada
cavar glórias e grandeza
do outro lado do mar.

Olha-me a história de um país perdido:
marés vazantes de gente amordaçada,
a ingénua tolerância aproveitada
em carne. Pergunta ao mar,
que é manso e afaga ainda
a mesma velha costa erosinada.

Olha-me as brutas construções quadradas:
embarcadouros, depósitos de gente.
Olha-me os rios renovados de cadáveres,
os rios turvos do espesso deslizar
dos braços e das mães do meu país.

Olha-me as igrejas restauradas
sobre ruínas de propalada fé:
paredes brancas de um urgente brio
escondendo ferros de educar gentio.

Olha-me a noite herdada, nestes olhos
de um povo condenado a amassar-te o pão.
Olha-me amor, atenta podes ver
uma história de pedra a construir-se
sobre uma história morta a esboroar-se
em chagas de salitre.


Ruy Duarte de Carvalho
Chagas de Salitre
“Chão de Oferta”

Ruy Duarte de Carvalho. BioBiblioFilmoGrafia



RUY Alberto DUARTE Gomes DE CARVALHO, antropólogo, artista plástico, cineasta, escritor e fotógrafo, nasceu em Santarém a 22 de Abril de 1941 e é angolano por opção. Passou a infância em Moçamedes, actual Namibe. Fez o Curso de Regente Agrícola em Santarém, em 1960. Como técnico agrário trabalhou no Uije, Gabela, Calulo e Catumbela e foi chefe de fabricação de cerveja em Lourenço Marques, actual Maputo (Moçambique). Escreveu para o jornal “Província de Angola” e para a revista “Prisma”. Andou por Hamburgo, Copenhaga, Bruxelas e Argel. Fez, em Londres, um curso de realização de cinema e televisão e regressou a Angola em 1974. Tornou-se realizador e trabalhou para a TPA - Televisão Popular de Angola, de 1975 a 1981. Em 1986 doutorou-se em antropologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Foi professor titular da Universidade de Luanda e professor convidado das Universidades de Coimbra (Portugal) e São Paulo (Brasil). É membro fundador da U.E.A., União dos Escritores Angolanos.

BIBLIOGRAFIA
Chão de Oferta (1972) - poesia
Exercícios de Crueldade» (1978) - poesia
A Decisão da Idade (1976) – poesia (inclui “Chão de Oferta”)
Como se o Mundo não Tivesse Leste (1977) - ficção
Exercícios de Crueldade (1978) - poesia
Sinais Misteriosos... Já se vê... (1979) - poesia
Ondula Savana Branca (1982) - poesia
O Camarada e a Câmara (1984) - ensaio
Lavra Paralela (1987) - poesia
Hábito da Terra (1988) - poesia
Ana a Manda, os filhos da rede (1989) - ensaio
Memória de Tanta Guerra (1992)
Ordem de Esquecimento (1997) - poesia
A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita (1997) - ensaio
Aviso à Navegação (1997) - ensaio
Observação Directa (2000) – colectânea poética
Vou lá visitar Pastores (1999) – narrativa [1]Lavra Reiterada (2000) – colectânea poética
Os Papéis do Inglês (2000) - ficção
Actas da Maianga, dizer da(s) guerra(s) em Angola (2003) – ensaio
Como se o Mundo não Tivesse Leste, nova versão (2003) - ficção
As Paisagens Propícias (2005) - ficção
Desmedida (2006) - crónicas

[1] A obra “Vou lá visitar pastores” foi adaptada para teatro por Rui Guilherme Lopes, encenada e interpretada por Manuel Wiborg e levada a cena numa co-produção Actores Produtores Associados/Culturgest (Portugal).

Antologiado em:Presença de Idealeda (1973)
Antologia da Poesia Pré-Angolana (1976)
Monangola. A Jovem Poesia Angolana (1976)
Poesia de Angola (1976)
No Reino de Caliban, Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa II (1976)
Poemas para Pioneiros (1979)
No Ritmo de Tantãs (1991)

PRÉMIOS LITERÁRIOS

Prémio Literário Mota Veiga 1972 (“Chão de Oferta”)
Prémio Nacional de Literatura da U.E.A. 1989
Prémio Literário Casino da Póvoa 2008 (“Desmedida”)

FILMOGRAFIA

Uma Festa para Viver (1976) – média-metragem
Angola 76, É a Vez da Voz do Povo (1976) – série documental
Faz Lá Coragem, Camarada (1976) – longa-metragem
O Deserto e os Mucubais (19769 – curta-metragem
Presente angolano / Tempo Mumuíla” (1979) – série documental [2]O Balanço do Tempo na Cena de Angola (1982) – média-metragem
Nelisita: Narrativas Nyaneka (1982) – longa-metragem
Moia: O Recado das Ilhas (1989) – longa-metragem

[2] Série seleccionada para a Semana dos Cahiers du Cinèma (1980), Paris, e para o Fórum do Jovem Cinema, Festival de Cinema de Berlim (1981)

PRÉMIOS CINEMATOGRÁFICOS

Diploma da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Paris 1982 (“Nelisita”)
Prémio Especial do Júri do Festival de Cartago 1983
Prémio Cidade de Amiens 1983
Prémio de Melhor Realização e Prémio UNESCO do Festival de Ouagoudougou 1984
Prémio para a Melhor Ficção, Aveiro 1984
Prémios para o Melhor Filme, Melhor Realização, Melhor Actor e Melhor Som do Festival de Cinema de Harare 1990 (“Moia”)


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